22 de março de 2010

Criança e álcool, perigosa relação

Em 1976, Afonso tinha 10 anos de idade, quando tomou seu primeiro gole de cachaça. O menino pobre morava em Petrópolis, perto da praia do Meio. A mãe lavava roupas, e o pai ganhava trocados carregando as compras de quem frequentava a feira das Rocas, mas perdia boa parte do dinheiro com a bebida.
Rodrigo SenaÉ cada vez maior o índice de ingestão de bebidas alcoólicas na infânciaAlcoólatra, o “balaieiro” (nome que se dava ao ofício do pai), morreu com menos de 50 anos. Porém, antes disso, apresentou de forma indireta a cachaça ao filho. Afonso, sorrateiro, provava diariamente da cachaça que o pai mandava comprar. E assim continuou e com 12 anos já bebia em festas e fumava. “Eu não sabia que o alcoolismo era uma doença orgânica e mental. E essa doença se instalou no meu corpo”, explica Afonso. Hoje, com 43 anos e afastado do álcool desde o primeiro dia em que visitou um grupo dos Alcoólicos Anônimos, há quase 15 anos. Porteiro de um prédio em Natal, ele domina a fera do alcoolismo, e no AA aprendeu que deve conversar com os filhos todos os dias. Tem dois de sangue e dois adotivos e nenhum bebe ou fuma. “Se proibir, é pior, aguça a curiosidade”. Nesta reportagem, somente o nome de Afonso é fictício. A história é bastante real e apesar de a iniciação dele com o álcool fazer tanto tempo, ainda representa bem a realidade atual. Pelo menos é o que diz uma pesquisa feita em 2008 na Espanha, pela Faculdade de Ciências Médicas e a Universidade Complutense de Madrid. O estudo foi feito com 1.012 crianças espanholas e brasileiras, entre 10 e 12 anos. O resultado chama a atenção: 43,8% dos alunos brasileiros (entrevistados em Campinas, São Paulo), já ingeriram bebidas alcoólicas. Na Espanha, o percentual é assombroso: 74,4%. O índice é menor nos dois países, quando o produto citado é o tabaco, porém não menos assustador: 12,7% no Brasil e 21,9% na Espanha.Os responsáveis pelas pesquisas dizem que nos últimos anos a idade de iniciação no álcool e no tabaco vem caindo bastante, baseada em fatores como acessibilidade e tolerância social. A pesquisa apontou ainda que entre o público brasileiro, 58,8% dos alunos têm mães que consomem álcool. O índice de crianças brasileiras cujos pais bebem foi de 49%. Na Espanha os pais bebem mais (78,5%) e as mães, bem menos (58,8%). O músico Kléber Araújo, de 24 anos, bebe desde os 11 anos de idade. Os pais dele não bebem, mas toleravam que ele o fizesse e o hábito foi adquirido com os amigos. “Acho que depende de cada pessoa. Eu mesmo tive uma época que bebia muito. Mas parei pra pensar e vi que devia diminuir”, disse o rapaz. O amigo dele, David Ramon, tem a mesma idade e começou a beber junto, também com 11 anos. Mas viveu situação diferente na infância. O pai bebe, mas não aceitava que ele fizesse o mesmo. “Comecei com um vinhozinho, essas bebidas fracas. Mas meu pai não gostava. Até hoje quando eu bebo ele reclama”, disse. Os estudiosos continuam pesquisando e as autoridades se preocupam. Em meio às discussões, tendo como cenário um Brasil onde álcool e tabaco são publicizados e comercializados com liberdade, o ponto pacífico é que a melhor forma de afastar os filhos das drogas lícitas é mesmo o diálogo aberto e a orientação frequente. Para psicóloga, diálogo é a saídaNa opinião da psicóloga Melina Séfora Souza Rebouças, o hábito de beber ou fumar dos pais não significa necessariamente influenciar no comportamento dos filhos. “Se não houver um embasamento de valores familiares, provavelmente vai influenciar. Mas é possível, sim, fazer esse distaciamento”, disse a psicóloga. Melina lembra que as drogas, lícitas ou ilícitas, são um assunto ainda enfrentado com medos e tabus, pelos pais, fazendo com que muitas vezes não haja diálogo com os jovens sobre tal questão. “Há pais que pensam que não falar sobre esse assunto é melhor. Pelo contrário. O ideal é manter um diálogo aberto, sem mentiras”. Segundo a psicóloga, a abordagem deve ser feita desde muito cedo. Uma criança de 5 anos, por exemplo, já pode ser esclarecida sobre os malefícios das drogas, numa linguagem específica para a idade, obviamente. Um outro comportamento que os pais podem experimentar é não proibir os filhos de forma ostensiva ou autoritária. A psicóloga ressalta que dar certa liberdade é estabelecer uma relação de confiança, fazendo a ressalva de que isso não significa não dar limites. “Tudo que é proibido aguça mais a curiosidade do adolescente, que já existe naturalmente”, disse a profissional. Além da falta de diálogo aberto, há também a questão da influência do meio em que o jovem está inserido. Um garoto que convive com uma turma que costuma beber e fuma, está mais propenso a embarcar nos mesmos hábitos. “Não podemos esquecer também do fator orgânico. Há a predisposição genética, que também influencia na possibilidade de alguém se tornar alcoólatra”. O fácil acesso ao álcool e ao cigarro no Brasil também é um problema na opinião de Melina. Em alguns casos, o alcoolismo, por exemplo, aparece já na adolescência, causando um efeito devastador na vida do indivíduo. “Hoje encontramos muitos casos desses. E no caso da tentativa de recuperação, se a família não apoiar, fica tudo muito difícil”. Juiz diz que realiza trabalho muito solitárioPara o juiz da 1ª Vara da Infância e da Juventude, José Dantas, a justiça deveria ter a ajuda das polícias Civil e Militar no combate ao consumo de álcool por crianças e adolescentes. “É um trabalho muito solitário o que nós fazemos”, disse o magistrado. Ele lembra que vender ou servir bebida alcoólica a menores é contravenção prevista em lei e por isso, também deveria ser combatido pelos policiais. De fato, é raro encontrar na crônica policial notícias que dizem respeito a pessoas que tenham sido advertidas ou detidas por estarem fornecendo bebidas a crianças ou adolescentes. Mesmo fazendo parte da cultura brasileira, e a pesquisa comprova isso, que os jovens tenham acesso a tais produtos, mesmo em estabelecimentos comerciais das cidades do país. Há de se levar em conta que as polícias tenham uma vasta demanda de delitos tidos como de maior potencial ofensivo, mas segundo o juiz isso não seria motivo para deixar de lado um problema tão relevante, tido até como de saúde pública. A 1ª Vara conta com uma equipe de cem fiscais voluntários que nos fins de semana percorre bares e restaurantes e em várias ocasiões encontram casos de filhos que estão bebendo em companhia dos pais. “Houve um caso em que o pais insistiu, dizendo que estava certo em servir bebida ao filho adolescente porque era coisa de macho. O pai acabou preso”, disse Dantas. Os fiscais também passam por grandes eventos, como o Carnatal ou vaquejadas, por exemplo. “As equipes atendem a denúncias também, inclusive para casos de festas privadas ou de família. Se houver uma situação em que uma criança esteja consumindo álcool, qualquer pessoa pode nos procurar”, disse o juiz. O telefone para denúncias nesses casos é o 0800 281 6900. Os fiscais da Vara da Infância ainda são voluntários, mas até o final deste ano deve haver um concurso no Tribunal de Justiça para a função.Entrevista - Afonso, nome fictício: "Meu pai mandava comprar os ‘burrinhos’""Eu não sabia que o alcoolismo era uma doença orgânica e mental. E essa doença se instalou no meu corpo”. É assim que Afonso - nome fictício - explica a sua dependência ao álcool, que ele combate diariamente, há 14 anos, nas reuniões dos Alcoólicos Anônimos. Afonso disse que começou a beber aos dez anos de idade, incentivado pelo pai alcoólatra, morto aos 50 anos de idade pela doença. Porteiro de um prédio em Natal, ele domina a fera do alcoolismo, e no AA aprendeu que deve conversar com os filhos todos os dias. Tem dois biológicos e dois adotivos e nenhum bebe ou fuma. “Se proibir, é pior, aguça a curiosidade”. A história de Afonso é bastante real e apesar de a iniciação dele com o álcool fazer tanto tempo, ainda representa bem a realidade atual. Pelo menos é o que diz uma pesquisa feita em 2008 na Espanha, pela Faculdade de Ciências Médicas e a Universidade Complutense de Madrid. O estudo foi feito com 1.012 crianças espanholas e brasileiras, entre 10 e 12 anos. Por que você diz que começou a beber por conta de seu pai? Como isso aconteceu?Afonso – Quando eu tinha dez anos meu pai mandava eu comprar os “burrinhos” (garrafa de 300ml) de cana para ele beber. E eu, por curiosidade, um dia tomei um pouquinho, escondido. E aí todo dia, antes de dar a garrafa a ele, eu provava um pouquinho e fechava a garrafa de novo. Quando você começou a beber normalmente?Com doze, treze anos eu já bebia em festas, comemorações. Quando você percebeu que era alcoólatra?Eu não sabia que o alcoolismo era uma doença orgânica e mental. E essa doença se instalou no meu corpo. Com 27 anos eu era alcoólico. Já bebia todos os dias. Dava tipo uma compulsão. Como uma droga, que é uma droga. Que fato marcou sua vida, depois da doença?Eu tinha 28 anos e um dia estava embriagado na Praia do Meio, e o carro me pegou. Tive fratura exposta no joelho, fiquei 24 dias no hospital. Tive três infecções hospitalares, saí e voltei para o Walfredo Gurgel e fiquei mais 24 dias. Quando eu saí, disse que não ia beber mais. Mas era uma ilusão. Os amigos, entre aspas, me chamavam pra beber e eu voltava. E quando você decidiu parar de verdade e procurar os Alcoólicos Anônimos?Para isso existiu uma abordagem. Uma pessoa amiga minha, que já era do AA, disse onde tinha uma sala do grupo e eu fiquei curioso, querendo parar de beber. Eu queria sair desse sofrimento e fui conhecer. Daí me aceitei como alcoólico, este é o primeiro passo. Até hoje você vai?Eu tenho 14 anos de AA e até hoje eu vou. Indo todos os dias me sinto fortalecido e hoje ajudo os outros. Hoje eu sou um alcoólico em fase de recuperação. Porque é uma doença que não tem cura. Se alguém pingar uma gota de álcool no meu refrigerante, eu posso voltar e pior. Eu tomo uma grade. E estar em recuperação significa tomar alguns cuidados...Exato. Por exemplo, se eu for para uma festa, meu copo fica sempre na minha mão. Porque um daqueles “amigos”, pode botar uma gota de álcool no refrigerante e despertar os leões como a gente diz. Tem um amigo meu que tem 20 anos de AA e teve uma recaída recentemente. Eu nunca tive mas estou sempre me vigiando. Então você acredita que o vício de seu pai lhe atingiu diretamente?É, né? Porque meu pai já era alcoólico, então eu já carregava a doença também. Meu pai morreu por conta da bebida. Tinha uns cinquenta anos, mais ou menos e eu tinha uns dez, onze. Ele morreu no hospital, já despelando. Quantos filhos você tem?Tem um casal da minha mulher, que mora comigo há mais de dez anos. O menino tem 20 anos, não bebe, nem fuma. A menina tem 12, não bebe nem fuma. E tem um casal que é meu, um menino de 9 e uma menina de 12. E como você trata esse assunto com eles?Todos os dias eu converso com os quatro. Sobre os males das drogas. Todos os dias eu oriento. Você não os proíbe de beber?Não. Não pode proibir. Tem que conversar, orientar. E até hoje graças a Deus nenhum bebe. Isso a gente aprende no AA. Se proibir é pior, porque desperta a curiosidade. E se um dia um deles chegar para você e contar que bebeu em uma festa?Eu vou chegar para ele e vou lembrar que não dá certo, que não é bom. Mas não vou brigar com ele. Ninguém pode proibir ninguém de fazer nada. Se ele quiser continuar a beber, ele vai continuar bebendo, bebendo até quando quiser parar por ele mesmo. E você, como membro do AA, já fez alguma abordagem e tirou afastou alguém do vício. Já sim. É a melhor sensação do mundo. Uma sensação de satisfação. É como se você tivesse salvo a vida de alguém. Assim como hoje me considero ressuscitado.

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