12 de julho de 2010

A epifania de Bill Wilson

No dia 14 de Dezembro de 1934, um corretor falido chamado Bill Wilson debatia-se com o alcoolismo num centro de desintoxicação de Nova Iorque. Era a sua quarta temporada no centro e nada tinha funcionado. Dessa vez, experimentou a cura beladona, que consiste em infusões de uma droga alucinogénia feita a partir de uma planta venenosa, e consultou um amigo chamado Ebby Thacher, que lhe disse para deixar de beber e pôr a vida ao serviço de Deus.

Wilson não era crente mas, nesse dia, já noite alta, não tendo mais para onde se virar, clamou, no silêncio do seu quarto de hospital: "Se Deus existe, que se manifeste! Estou pronto a fazer qualquer coisa. Seja o que for!" Segundo a descrição de Wilson, uma luz branca inundou o quarto e a presença de Deus fez--se sentir. "Parecia-me, através dos olhos da mente, que eu estava no alto de uma montanha e que soprava um vento, não de ar, mas de espírito", declarou mais tarde. "E então fez-se luz dentro de mim e percebi que era um homem livre."

Wilson nunca mais tocou em álcool. Mais tarde fundaria os Alcoólicos Anónimos que, passados 75 anos, têm mais de 11 mil centros profissionais de tratamento, 55 mil grupos de reuniões e cerca de 1,2 milhões de membros.

O movimento foi tema de um ensaio inteligente e exaustivo da autoria de Brendan Koerner na edição de Julho de 2010 da revista "Wired". O artigo é digno de nota não só devido às informações que nos dá sobre o que se sabe actualmente sobre dependência, mas também pelo que nos diz, em termos mais gerais, sobre as alterações de comportamento. Muito do que fazemos em política de saúde pública é tentar levar as pessoas a comportarem-se no seu próprio interesse a longo prazo: acabarem a escola, casarem-se, evitarem os gangues, perderem peso, pouparem dinheiro. Como a alma é muito complicada, muito do que fazemos falha.

A primeira constatação do ensaio de Koerner é a de que nos devemos habituar a falhar quase sempre. Os Alcoólicos Anónimos passaram o teste do tempo. Há milhões de pessoas que acreditam fervorosamente que o sistema dos 12 passos lhes salvou a vida. Porém, a maioria, a grande maioria mesmo, das pessoas que aderem ao programa não tem êxito. As pessoas são idiossincráticas; não há nenhum programa que opere a transformação da maioria das pessoas na maioria dos casos.

A segunda constatação é que temos de ultrapassar a ideia de que um dia vamos conseguir descodificar os comportamentos, encontrando um método científico que nos permita prevê-los e conceber programas sociais fidedignos. Como Koerner faz notar, os AA têm sido objecto de milhares de estudos. Todavia, "ninguém conseguiu ainda explicar satisfatoriamente por que razão umas pessoas têm êxito e outras não, nem sequer qual a percentagem de êxito."

Cada membro dos AA é distinto. Cada grupo é distinto. Cada momento é diferente. Não há maneira alguma de os cientistas reduzirem esse tipo de complexidade a equações e fórmulas capazes de serem replicadas.

Apesar disso, há que rechaçar o fatalismo. É possível elaborar programas capazes de ajudarem algumas pessoas, algumas vezes. Os AA encerram alguns dados preciosos sobre a psicologia humana. Numa cultura que, na generalidade, privilegia a auto-habilitação e a auto-estima, os AA começam pela negativa. O objectivo é fazer com que as pessoas adquiram controlo sobre as suas vidas, mas esse processo começa por um acto de rendição e de admissão de fraqueza.

Numa cultura que se assume individualista, os AA recorrem ao colectivo. A ideia geral é de que não se é, na realidade, capitão do seu próprio navio. Os membros que têm êxito são os que se interligam estreitamente: aprendendo, partilhando, sofrendo, apoiando-se mutuamente. A reabilitação do indivíduo é um esforço social.

Num mundo em que os gurus tentam afincada e cuidadosamente conceber e impor as suas ideias, Wilson abriu mão do controlo. Escreveu os famosos passos e fundamentos, mas os AA permitem que cada grupo local reformule, adapte, inove. Há menos controlo de qualidade. Alguns grupos e dirigentes são óptimos, outros péssimos. Mas isso também significa que os AA são descentralizados, inovadores e dinâmicos.

Os alcoólicos têm um problema específico: bebem de mais. Mas em vez de abordar esse problema com o equivalente psíquico de um míssil teleguiado de grande precisão, Wilson propôs-se transformar a identidade de cada indivíduo no seu todo. Estudou "The Varieties of Religious Experience", de William James. Procurou despertar as aspirações espirituais das pessoas em vez de fazer apelo a uma análise custo-benefício. O grupo dele iria ajudar as pessoas a atingirem um despertar espiritual de largo espectro, sendo que a abstinência do álcool seria um subproduto dessa salvação mais abrangente.

No âmbito da alteração de vidas, o percurso mais linear é raramente o melhor. Os AA são a prova de que, mesmo numa era de avanços científicos, continuam a ser os antigos conhecimentos da natureza humana os que melhor funcionam. Wilson construiu uma organização notável a partir de um momento nocturno de epifania espiritual.

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