Pelo ano de 1956, à porta da igreja de São Pedro na cidade de Barcelona, em Espanha, pedia esmola, todos os dias, um pobre esfarrapado e sujo. Era o velho Artur. De cara sombria, olhos tristes, com ninguém falava. Só estendia a mão a quem entrava e saía da igreja. Se lhe davam algumas moedas, inclinava cansadamente a cabeça para agradecê-las. A camisa rota deixava a descoberto sobre o peito escuro um crucifixo de ouro. Um sacerdote novo, Pe. Luís de Afuentes, costumava celebrar a Santa Missa naquela Igreja. Ao voltar para casa deixava cair nas mãos do mendigo uma esmola. Ambos se conheciam através deste rasgo de caridade cristã. O Pe. Luís, de família rica e nobre, tinha-se feito sacerdote, levado unicamente pelo desejo de servir a Deus e fazer bem ao próximo. A vida e tudo quanto tinha herdado dos pais destinava-o ao apostolado e ao socorro dos infelizes. O seu coração bondoso tinha-se afeiçoado ao velho mendigo, cuja vida desconhecia inteiramente. Sabia apenas que era um desgraçado que precisava de ajuda para não morrer de fome. Certa manhã notou que Artur não estava à porta da igreja. Temendo alguma desgraça, depois de ter obtido informações seguras, foi visitá-lo a casa. Num sótão fétido e escuro, encontrou-o pálido, os olhos encovados, a respiração ofegante. Muito doente, a arder em febre, sentia-se desprezado dos vizinhos, esquecido pelos parentes e abandonado por todos. A morte aproximava-se e ninguém se importava com ele. Só aquele sacerdote novo o tinha vindo visitar. Quando o viu, o velho Artur exclamou comovido: – Oh! Senhor Padre Luís, que bom é, para vir visitar este miserável! Eu não merecia. Sou um desgraçado! – Que está a dizer, Artur? Não sabe que o sacerdote é amigo dos pobres? Não sabe que a Igreja é a mãe de todos e, principalmente dos doentes, dos abandonados, dos infelizes e... dos desgraçados? Além disso, lembre-se bem – acrescenta sorrindo o Pe. Luís – nós somos velhos amigos. – Ah! Senhor Padre! Se soubesse... Se me conhecesse não falaria assim. Não, não. Sou mau, muito mau, um miserável, maldito de Deus. E desatou a chorar. - Maldito de Deus? Que diz, Artur? Neste mundo não há malditos de Deus. Nosso Senhor é bom. O Padre é um representante desse Deus infinitamente misericordioso. Se O ofendeu, arrependa-se, tenha confiança n'Ele e confesse-se, pois tudo lhe ficará perdoado. Estou aqui para o ajudar no que for preciso. – Arrependo-me, sim, arrependo-me – exclamou o velho sentando-se na cama e abrindo mais os olhos assustados. Há vinte anos estou arrependido. Mesmo assim, sou um desgraçado. O Pe. Luís com a maior bondade falou-lhe da misericórdia infinita de Deus que tudo perdoa, tudo esquece. Contou-lhe a parábola do filho pródigo e o caso de Santa Maria Madalena. Jesus é um pai que nunca rejeita o pecador arrependido. O mendigo parecia não ouvir, nem fazer grande caso de tão suaves palavras. Por fim, animado pela caridade do sacerdote, muito devagar e com voz sufocada, pôs-se a contar a sua triste história: – Eu era criado numa casa nobre e rica, quando em 1936 rebentou a guerra civil de Espanha. Os meus patrões eram muito bons e muito meus amigos. Eram o senhor e a senhora, duas meninas e três meninos, todos muito católicos, felizes e bem dados. Tudo quanto eu tinha, à sua generosidade o devia. Com a guerra, apareceram os comunistas e eu, então, atraiçoei os meus senhores, tão bons. Ai, meu Deus! Tinham-se eles escondido muito bem. Para ganhar a recompensa que os comunistas me prometeram, indiquei-lhes o lugar, só por mim conhecido. Prenderam-nos e levaram-nos quase de rastos, entre ponta-pés e pancada, para uma cadeia negra e úmida. Ali teriam morrido de miséria e de fome, se não os tivessem matado antes. Mas mataram-nos. Parece que estou a ver. Foi um dia escuro e triste. Aos ponta-pés e empurrões arrastaram para fora da cadeia toda a família. A pobre mãe abraçava-se aos filhos e chorava como louca. O pai abençoou-os com as lágrimas a escorrerem-lhe pelas faces. As suas últimas palavras foram estas: – "Coragem, mulher; ânimo, meus queridos filhos! Daqui a pouco estamos no céu. Lá, seremos para sempre felizes. Viva Cristo Rei!" Os soldados descarregaram as metralhadoras e tombaram todos mortos. Todos, não... Por ser muito pequeno, não mataram o menino mais novo, chamado Luís. Não sei o que será feito dele. Um suspiro involuntário saiu do peito do sacerdote. O suor frio escorria-lhe pela face, ficando a ponto de desmaiar. O pobre velho, comovido e surdo, de nada deu conta. E continuou a sua triste história: – Senhor Padre, tudo isto é horrível. Os malditos comunistas deitaram os corpos num barranco da serra para que os animais os devorassem. Eu sou o culpado de tudo. Sou um monstro, um desgraçado. Desde então nunca mais tive paz. Choro e rezo por eles. Vejo-os sempre diante de mim. E continuou: – Este crucifixo que vê aqui por cima da cama era do meu patrão... Esta cruzinha que tenho no peito, trazia-a a senhora sempre consigo e com ela foi fuzilada. Apontando para a parede declarou: – Ali estão, atrás daquele pano, os retratos de ambos. O sacerdote ouvia comovidíssimo e pálido como morto. Levantou-se com calma e, correndo a cortina, fixou os dois retratos. O velho soltou um grito ao vê-los. O Pe. Luís chorava. – Artur, – disse com voz trêmula – venho perdoar-lhe em nome de Deus. Vou confessá-lo. Sentando-se à beira do leito numa desengonçada cadeira, ouviu a confissão do velho mendigo. No fim disse-lhe: – Artur, Deus acaba de lhe perdoar. Eu perdoo-lhe também, pelo amor que Jesus nos tem aos dois: a si e a mim. Depois de uma leve pausa: – Artur, vou-lhe descobrir toda a verdade. Você matou o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs e os meus irmãos. Eu sou aquele Luís que escapou à morte. Sou Luís de Afuentes. Não se aflija. Está tudo perdoado. O velho abriu os olhos. Fixou a vista triste e cansada no padre e proferiu uns sons inarticulados. Que disse? Só Deus o sabe. Deixou cair a cabeça sobre o travesseiro. O Pe. Luís aproximou-se. Viu que Artur, o assassino da sua família, tinha morrido devido talvez ao choque emotivo recebido. Partiu deste mundo, perdoado por Deus e por ele, o único sobrevivente da família.
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