22 de agosto de 2009

PROJETO 4 VARAS-ENTREVISTA COM O Dr.Adalberto Barreto

"AQUI O REMÉDIO É A PALAVRA"O Projeto 4 Varas, um achado para agente pobre abandonada nas comunidades— e por que não para gente ricatambém? — parece simples nas palavrasde Adalberto de Paula Barreto. Essasimplicidade talvez venha de seu amplocurrículo. Três graduações, em Medicina(UFC), Filosofia e Teologia (França eItália), dois doutorados, em Psiquiatriapela Universidade René Descartes, aantiga Paris V, sobre “a comunicaçãocom a família do esquizofrênico”, eem Antropologia, pela Université Lyon2, sobre “a medicina popular no sertãodo Ceará hoje”. Quem sabe venha daexperiência de 20 anos em terapia comunitária,cujo primeiro pólo ele criouem 1986 com tanto êxito que já superaos 500 mil atendimentos. Mais provávelque seja a combinação de academia eprática, bem ao gosto dele.Na terapia comunitária, a medicinaconvencional do PSF se escora nasmedicinas populares e no acolhimentoao desabafo. Antes de mais nada, todosfalam, ouvem e se vêem uns nos outros— a relação do espelho de Freud. “Aquio remédio é a palavra”, diz Adalbertonesta entrevista dada à Radis em dezembrona sede do 4 Varas.Como entender o Projeto 4 Varas?Entre patologia e sofrimento. Temosum posto de saúde do PSF e lá se trabalhaa patologia, com médico, enfermeiro,dentista. Aqui se trabalha o sofrimentoe a promoção da saúde, usando curandeirose recursos disponíveis da cultura,como massagem, argila com as pedrasmornas, banho de ervas e rezas. Então,são duas medicinas complementares: lá,a patologia com os especialistas; aquise trabalha o sofrimento promovendo asaúde e reduzindo os danos.Para que as redes?Temos as redes armadas para aspessoas se deitarem. A casa acolhe o sofrimento,a dor da alma numa massagem,por exemplo. Observamos que a maiorparte das pessoas que geralmente vãoaos postos de saúde quer ser acolhidae desabafar, e muitos hospitais e postosestão medicalizando o sofrimento, osproblemas existenciais. Uma mãe ansiosae desesperada porque o fi lho entrou nomundo das drogas precisa de um psicotrópicopara dormir ou ser acolhida? Namassagem ela pode chorar, falar e compreender.Essa é a distinção que queremosfazer aqui, uma medicina científi ca epopular que aja de forma complementar.Não estão em competição, não estãobrigando pela patologia.Como funciona?São seis massoterapeutas pagos pelaprefeitura. As pessoas encaminhadas peloSUS recebem a massagem gratuitamente.Vem gente da comunidade mandada pelosmédicos do PSF, dos CAPS. Fazem 10massagens duas ou três vezes por semanae participam da terapia comunitária,de resgate da auto-estima. É a terapiacomunitária virando política pública doMinistério da Saúde. A Fiocruz vai ter umpólo formador desta metodologia.Essa união com a medicina alternativaé o ideal para a saúde pública?Acho que sim. Não diria medicinaalternativa, porque o alternativo pressupõea exclusão do diferente. Eu chamariade medicinas complementares. Temosum modelo biomédico centrado na patologia,no medicamento, uma medicinamuito cara. Mas existe no cotidiano muitosofrimento decorrente do estresse, daeducação dos fi lhos, do desemprego. Estesofrimento no passado era tratado porbenzedeiras, padres, pajés, havia essasinstituições de escuta, de apoio. Com amodernização da sociedade, a tendênciaé jogarmos isso fora e medicalizarmos osofrimento. Quando vim para a favela,dei-me conta de que a maior parte daspessoas que vinham falar comigo traziauma dor na alma que psicotrópicos nãoresolveriam. Não que eu seja contra:cabem em determinados momentos.Percebi que se fi casse medicalizandoos problemas existenciais acrescentariamais sofrimento. Descobri que não podiaexercer a psiquiatria do mesmo jeito dohospital, onde diagnostico e prescrevomedicamentos. Mesmo quando podiaprescrever as pessoas não podiam comprar.Essas foram algumas difi culdades.Estar na comunidade também é umdiferencial do projeto?A gente contextualiza melhor essesofrimento. Quando uma pessoa diz queestá com insônia, a insônia é o sofrimentoe a cura é voltar a dormir. A tendênciaé prescrever um psicotrópico. Quandose está na comunidade e vem uma mulherchorando, com insônia ou engasgoporque a filha de 14 anos engravidou,essa mulher precisa de um psicotrópico,um benzodiazepínico? Ou precisa serdesengasgada pela própria comunidade?Quando a boca cala os órgãos falam: seessa mulher não se desengasgar hoje entraem processo depressivo, de doençamesmo. Então, a terapia comunitária,numa proposta inicial, é criar um espaçode palavra. Aqui o remédio é a palavra.Ela é para quem fala, é para quem ouve.Na troca a comunidade cria vínculos, vaise reconhecendo no apoio. Partindo deuma situação-problema, a mãe viu que15 pessoas já viveram isso, inclusivena situação contrária: a filha que diz,eu também engravidei com 14 anos.Ela se vê na fi lha, a relação do espelhode Freud. E entende que tem que tercalma, sabedoria e tolerância.E gente que vem se tratar acabatratando...A Cleinha, quando veio, era tambémuma pessoa entalada. Quando securou começou a mandar pessoas, e detanto mandar vi que tinha capilaridadena comunidade, capacidade de formaruma rede de apoio social. Veio o cursoe a convidei. Dona Zilma era doida depedra, alguém disse que era curandeiratambém. Um dia estávamos numa terapiae uma pessoa passava mal: ela disse queera um encosto. Então, eu disse, se asenhora sabe o que é, vai fazer, eu nãosei. Ela foi, outras pessoas começaram apedir que ela rezasse e depois não deumais tempo de endoidar. Dona Franciscame trouxeram neoleptizada, tomavavários remédios, babando. Alguém medisse, ela é rezadeira da umbanda. Eudisse a ela, os meus remédios não dãoconta de tanto sofrimento. Ela olhou paramim babando e disse: você acredita queeu vou ficar boa? A senhora não nasceuassim, vai ficar boa. Fui tirando a medicaçãoe orientando, terapia e conversando.Hoje é uma das nossas curandeiras.Abordagem que olha mais a saúde doque a doença...Por isso dá certo. Nossas rezadeirassão pessoas desvalorizadas em busca devalor. O doutor não cura câncer, a minhareza cura câncer, dizia, para se valorizar.O meu trabalho tem sido dizer: a medicinade vocês não é para combater apatologia, eu cuido da promoção da saúde.Aí as duas medicinas se aproximam,se valorizam e são complementares.Cada uma é rica naquilo em que a outraé pobre. A medicina popular é rica noafeto, no acolhimento, mas é pobre notratamento da patologia. Já a medicinacientífi ca é rica no arsenal de antibióticose psicotrópicos, mas humanamenteé uma favela existencial. Quando meaproximei dela aprendi a acolher melhore a valorizar os recursos que se tem.Agreguei valor ao ato médico.Explique melhor.Desde o início a nossa pedagogiaé centrada na competência, e não nacarência. Vivemos num modelo de influência judaico-cristão que valoriza oque não funciona, o pecado, o negativo.Esse modelo desestabiliza o indivíduo,culpabiliza o outro. A pessoa culpabilizadase desestabiliza e busca o salvador. Omodelo do salvador da pátria se baseia nacarência e no negativo. A nossa imprensasó evidencia o que não funciona, o quefunciona não dá notícia. A educação é amesma coisa: seu fi lho faz tudo normal,ninguém diz nada, mas se faz algumacoisa errada, o sermão é deste tamanho.Ninguém quer compreender o que funciona,porque não dá status. Sempre contouma história sobre dois índios tomandobanho num rio e vêem duas criançasmorrendo afogadas. Salvaram os dois,apareceram quatro, oito, 16. Um dosíndios disse: você salva o que puder queeu vou ver quem está jogando esses meninosna água. O índio que ficou salvandoos afogados é a nossa medicina curativa:acha que só ela salva, tem as estatísticas,precisa de bons salários, de melhorescondições etc. e tem um discurso críticodesvalorizador de quem vai fazer aprevenção e a promoção da saúde, queconsidera “turista”, “sonhador”.A medicina popular...Nossa luta é dizer: você que estásalvando o outro, teu trabalho é tão importantequanto o de quem está fazendoa prevenção e a promoção da vida. Aí, noano passado veio o estudo de impacto daterapia comunitária: 2 mil questionáriosem dois estados, 88% dos problemasresolvidos in loco, apenas 11,5% encaminhadosaos postos de saúde.Ela já existe em todo país?Hoje, sim. Já treinei 11 mil terapeutascomunitários, temos 30 pólosformadores no Brasil — a Fiocruz seráo 31º. Já foi criada a Associação Brasileirade Terapia Comunitária (www.abrapecom.org.br). O impacto foi esse:apenas 11,5% dos problemas encaminhadosaos postos. Multiplique isso por milhares...Há um enxugamento nos postosde saúde, ou seja, o índio — ou o médico— que salva os que estão morrendo continuasalvando, respira melhor. Então,nossa idéia é complementar o cuidado.Nós na promoção também tendemos aridicularizar e menosprezar o trabalhoda medicina científi ca, mas precisamostanto dela como ela da nossa.A expectativa de trabalho do PSF...Exatamente. A academia produzconhecimento, mas a experiência devida também. Tenho observado: damosmelhor o que não recebemos, ensinamosmelhor o que precisamos aprender. Asque não foram amadas e foram rejeitadasestão acolhendo, as que foram violentadasestão dando massagem, acolhendo ador do outro. Até hoje uso a metáfora: aostra que não foi ferida não produz pérola.A pérola é resposta a uma agressão.Toda família está ferida. As vitórias doano são: meu marido deixou de beber,comprei minha casa, arranjei emprego.Se as pessoas arranjam emprego fi cammais autônomas, conquistam as coisas.Nós intervimos nos determinantes sociaisda saúde, evitamos que essa pessoa virecardiopata, diabética, e daqui a 15, 20anos precise de tratamento caríssimo.Nosso trabalho é intervir nos determinantessociais usando os recursos dacomunidade, a argila, as mãos, a músicae a sabedoria produzidas pelas carênciasde vida. Eles faziam isso no anonimato,sem reconhecimento. Minha função éofi cializar esse poder.Que conselho dar a quem está seformando em terapia comunitária ouse interessou e não sabe por ondecomeçar?O curso se faz para acabar com amania de querer curar o povo. Temosduas fontes geradoras de competência,a academia e a experiência de vida. Osaber da academia nos dá identidadeprofi ssional como médico,dentista e enfermeiro, o saláriofinanceiro, o saber pela competência.No sofrimento temosainda o salário afetivo: não é precisoser médico, enfermeiro, não precisater faculdade para exercer a terapiacomunitária; não precisa ser psicólogoporque não vai fazer análise, não precisaser médico porque não vai prescreverremédio. Precisa ter engajamento coma comunidade, uma ação cidadã quetranscenda classe social, profi ssões. Cuidandodo outro, curo a mim mesmo.Como é a capacitação?São quatro módulos em quatrodias em regime de internato, comintervalo de dois meses, ao longo deum ano. As pessoas vão aprendendo astécnicas de como garimpar a péroladas feridas da vida. Começam porum trabalho pessoal. Como será umtrabalho de acolher o outro e escutar,tem que aprender a valorizar ea escutar. É muito prazeroso, porquealém do salário fi nanceiro há o salárioafetivo. Partimos do pressuposto deque a primeira escola é a família, e oprimeiro mestre, a criança que fomos.Com a minha criança aprendi muitacoisa. Numa família em que os pais sedisputam de forma injusta, a criançaque observa se torna mediadora. Sempreatribuímos competência a um livroque lemos, a um curso, jamais ao quevivenciamos. Na terapia comunitária,fazemos a pessoa perceber que acompetência dela se inscreve em suahistória de vida. Com mulheres injustiçadaspelos maridos descobre-se queem casa a mãe vivera esta situação.Compreender isso dá empoderamento,capacidade para um trabalho genial. Oseu Zequinha fala errado, mas quandonão estou dirige toda a terapia. Comoele entendeu o espírito, ele faz.Sem ser médico nem enfermeiro...Diria que para ser terapeuta comunitáriotem-se que gostar de trabalharcom comunidade, tem que aceitarfazer um trabalho sobre si mesmo paradesconstruir os modelos mentais quenos foram construídos. Não precisa sermédico nem enfermeiro. Se for, agregavalor. Vai descobrir que não é o salvadornem o bombeiro da pátria: vamos encontrarsoluções partilhadas. A pessoa temo problema, nós temos problemas e asolução vem da partilha. (A.D.L.)

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