No Brasil, 9 mi de pessoas acima dos 18 bebem todos os dias; método ganha reconhecimento científico
PUBLICADO EM 20/05/18 - 03h00
LITZA MATTOS
Antes
de completar 22 anos, o aposentado Vitalino, 70, nunca havia tido contato com
bebida alcoólica. Natural de Raul Soares, na Zona da Mata mineira, ele começou
a trabalhar na área de construção em Belo Horizonte. “Eles me diziam que, para
ser homem, eu tinha que beber. Eu fui no embalo, comecei com um pouquinho, mas
depois fugiu do controle e tive que procurar ajuda”, lembra.
O
auxílio a que o aposentado se refere veio do grupo de ajuda mútua de
recuperação para dependentes de álcool Alcoólicos Anônimos (AA).
Para
os que frequentam as reuniões da organização mundial quase centenária, o AA é
mais do que um grupo de ajuda, é uma irmandade. Membro há 18 anos, o gerente
administrativo Eduardo, 70, conta que o programa é um tratamento espiritual,
mas não está ligado a nenhuma religião. “Por isso, falamos em uma irmandade de
homens e mulheres”, diz.
E é
exatamente esse caráter espiritual, aliado, entretanto, a outros mecanismos,
que tem feito o AA obter resultados tão bons, ou até melhores, quanto os de
outras intervenções no que se refere à abstinência sustentada e à remissão do
uso de álcool. Além disso, ele proporciona menores custos com cuidados de saúde
para o enfrentamento da dependência. Essa constatação foi divulgada por estudo
que analisou os resultados científicos de 25 anos de pesquisas sobre os
benefícios e mecanismos de mudança de comportamento frente ao álcool do modelo
de 12 passos em comparação com a terapia comportamental cognitiva ou outros
tratamentos ativos, como entrevista motivacional ou terapia de aprimoramento
motivacional.
Publicada
no periódico “Addiction”, a pesquisa do professor associado da faculdade de
medicina da Universidade Harvard e diretor do Recovery Research Institute, nos
Estados Unidos, John F. Kelly, mostra que as intervenções do AA funcionam por
meio de múltiplos mecanismos, mas, principalmente, pelos aspectos
sociocognitivos e afetivos.
As
análises constataram que o método ajuda a aumentar a recuperação dos laços
sociais e as habilidades de enfrentamento da dependência e a manter a motivação
da recuperação ao longo do tempo. Consequentemente, também foram observados
menores índices de depressão, egoísmo, autocentrismo, assim como dos
sentimentos de raiva e de ressentimento entre os indivíduos que frequentam o AA.
“Tem
funcionado tão bem por tanto tempo porque atende a vulnerabilidade crônica das
populações dependentes e reconhece que as pessoas precisam de apoio contínuo
por muitos anos, mesmo após a remissão estável, além de estar disponível
gratuitamente”, disse Kelly a O
TEMPO.
O
país tem quase 5.000 grupos do AA. Minas Gerais é o Estado com mais unidades
(867), seguido por Rio de Janeiro (617), São Paulo (470) e Ceará (415), de
acordo com o Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa). No Brasil, o
consumo de álcool per capita chegou a 8,9 L em 2016 e superou a média
internacional, de 6,4 L por pessoa. O país tem 9 milhões de pessoas com mais de
18 anos que bebem uma ou duas doses por dia.
Para
o psiquiatra especialista em dependência química e presidente do Cisa, Arthur
Guerra, o estudo serviu para comprovar a efetividade do método.
“O
AA cria condições para o desenvolvimento de uma reparação e melhora de
autocuidados, evitando lugares e situações que estimulem o uso de álcool. É um
interessante recurso de apoio que pode ser acionado a qualquer momento pelas
centenas de unidades espalhadas no Brasil e no mundo”, afirma.
Para
o aposentado Vitalino, que chegou ao AA aos 34 anos, o programa lhe devolveu a
dignidade. “Nesses 36 anos não perdi mais amigos. Até hoje eu sinto que a
necessidade de ficar sem beber é muito grande porque qualquer deslize é muito
arriscado”.
Polêmica. No
entanto, o modelo praticado pelo AA ainda desperta controvérsias que Kelly
atribui aos aspectos espirituais, quase religiosos, do método. “As pessoas
talvez acreditem que seja, de alguma forma, uma lavagem cerebral, uma seita ou
um culto, ou que não seja científico. Talvez também porque seja difícil
acreditar que os colegas sem experiência clínica ou treinamento possam produzir
tal grau de benefícios que observamos”, analisa.
Depoimento
“Meu envolvimento com o álcool
começou lá no interior. Aos 10 anos, eu já ingeria porque fui criado em uma
fazenda com alambique. Ali eu comecei com pequenas doses. Lá em 1953 a OMS
classificou o alcoolismo como doença. E não tem cura; se tivesse, eu não
estaria no AA e teria sido curado nas internações. Fundo de poço, cada um tem o
seu, o meu foi bem violento, mas até o dia em que cheguei ao AA. A proposta é
manter-se sóbrio e ajudar o outro a se recuperar do alcoolismo a partir do
momento em que ele queira. Eu não quis, não, mas cheguei aqui. Eu achava que eu
não era alcoólatra. A terceira tradição do AA deixa claro que o único requisito
para se tornar membro é o sincero desejo de parar. Eu não tinha esse sincero
desejo e consegui, e, para mim, funcionou. O primeiro dos 12 passos do AA é:
‘Admitimos que éramos impotentes perante o álcool – que tínhamos perdido o
domínio sobre nossas vidas’. Aquilo ali me deixou uma dúvida, pois eu achava
que não tinha perdido o domínio, mas, depois de 24 anos, vi que tinha perdido
tudo, o domínio, a saúde, a moral... Desde 2000 eu sou membro do AA. Passei por
várias internações. Perdi meu primeiro casamento porque eu preferia o álcool.
Eu não acompanhei o crescimento dos meus filhos porque o álcool não deixou. O
AA foi a minha salvação, salvou a minha vida. É uma mudança de vida.”
Eduardo, 70
Gerente
administrativo
Natural
de Simonésia
Fonte; www.otempo.com.br
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